Este texto faz parte do livro "O futuro da música depois da morte do CD", publicado em www.ofuturodamusica.com.br e cuja leitura recomendo fortemente, por ser grátis, por ser um apanhado de opiniões muito boas e por fazer bem ao ser consumido, como o brócolis e as sardinhas.
Separei o meu artigo aqui para dar a ele mais um impulso, já que o termo Novo Ecad anda circulando bastante e seu conteudo pode ajudar na discussão do que devemos fazer nós que lidamos com música e cultura, quando temos de lidar com essa coisa digital.
Seus comentarios são o motivo disso aqui, deixe sua marca.
E agora, o que eu faço do meu disco?
A pergunta é antiga.
Desde meados dos anos 90, quando a "informatica" democratizou os meios de produção, os artistas se viram com este dilema. Programas de subsidios á Cultura, ferramental barato – estudios e instrumentos, o espaço minguando nas multinacionais do disco, varios fatores dispararam um processo onde o musico e artista, no papel de produtor fonográfico, chegava sozinho até o disco e o momento de aflição acontecia. Abriam-se as portas do armário, atulhado com um milhar de Cds recem chegados da fábrica e se fazia esta pergunta fatal. O que eu faço do meu disco?
Um ramalhete de canções, um maço de músicas, uma dúzia de opus arrumados em embalagem para viagem, um formato que durou cinco decadas cheias de emoções e parecia a forma natural de ser, o tamanho certo e organico, suficiente para uma etapa na rodovia, para um romance, para a audição saborosa. Toda uma cadeia produtiva se formou e criou limo em volta deste costume tribal global, lançar suas músicas uma vez por ano, num disco com 12 faixas.
Mas subitamente a música se livrou do suporte material, digitalizou-se de uma vez, transcendeu o meio e se transformou na própria mensagem. Os bits imateriais percorrendo os nervos de cobre espalhados pela superficie do planeta explodiram uma supernova, todas as músicas ao mesmo tempo em todos os lugares. Inexoravelmente, vazios de conteudo, os canais de circulação dos discos de música vão secando, lojas fechando todo dia, radios só de noticias, o axé venceu pelo beijo na boca, começa uma nova era – O CD Morreu! Perplexos, músicos e artistas continuam com aquela mesma pergunta. O que eu faço com meu disco?
Talvez o conceito não esteja tão fadado a morrer quanto dizem. Talvez tenha de se metamorfosear, como as borboletas e os sapos ao saírem de sua fase primitiva. Talvez seja mesmo apenas um parágrafo na história da arte, como as gavotas e o o cha cha cha.
Depois do mundo caótico, do caos, confuso, sem nexo nem ordem aparente, virá um mundo quântico, onde todas as hipóteses são possíveis e os paradoxos convivem, prepare seu coração porque pode ser assim, quando houver banda larga em todos os lares.
Imagine um mundo em que o CD morreu, mas sobrevive. Morreu à míngua, as ultimas lojas, as de colecionadores, fecham as portas, não há mais espaço de CD nos supermercados nem nos magazines. Ainda sobrevivem as lojas que vendem Cds pela internet. Uma conferida no Amazon mostra que ainda existem um milhão de títulos no catálogo físico, em 2008. A partir de, digamos, 500 mil títulos, é apenas um nome no catálogo e se você quiser comprar, é preciso dar um tempo para se localizar o produto, pelo menos haverá uma tentativa de localizar. Já no Submarino, CDs ainda são uma sessão importante, na pagina principal, e o destaque reflete o CD como um presente: as românticas caixas de românticos artistas, o Padre campeão de vendas, Madonna e Rolling Stones. Uma busca rápida mostra que o fundo do catálogo do Submarino é mais superficial do que no catálogo da Amazon. Parece que só está a venda o que existe fisicamente num estoque de gravadora, e isto, como saberemos, tende a diminuir.
Vamos dividir o mundo em dois. Deste lado, numa pilha, todos os CDs legitimos, que tenham metadata, um CNPJ, e um endereço para contato. Do outro lado, outra pilha com todos os CDs restantes, que não preencham os três requisitos.
Por partes: metadata - dados além da música - é aquela informação que estava na capa do disco, na embalagem do CD e que se abre quando você clica num CD, numa loja de internet. Metadata contem a arte da capa, a ordem das faixas, seu tempo e nome, autores, o selo, a data de lançamento etc, todas as informações que haviam na capa do disco, e que agora fazem parte de um arquivo que anda junto com as faixas do CD na venda de download. Metadata completo implica que alguem se preocupou em ter os contratos e autorizações com todos os envolvidos: autores, editoras, licenciantes etc, todos devidamente identificados como nas fichas técnicas dos CDs e LPs.
Metadata completa e com CNPJ já é um pouco mais dificil, implica que havia uma empresa associada a este produto, e que esta empresa fornece o CD que pode ser vendido numa loja eletrônica. Sem CNPJ, sem Nota Fiscal, é uma venda informal, portanto, as lojas serias não vendem CDs sem Nota. Por fim, é preciso que esteja alguém num endereço comercial, para atender aos pedidos das lojas, dos discos vendidos pela internet, já que ninguém mais quer ter estoque. Assim, chegamos à situação atual, onde só discos distribuídos formalmente estão à venda nas lojas formais, que por sua vez são cada vez menos pontos de venda de música, mesmo na internet, o que estrangula cada vez mais a cadeia produtiva. Neste trecho do circuito, só vende o que vende, o que é comercial e tem demanda.
Voltando ao nosso mundo dividido em dois, às duas pilhas. A primeira pilha de CDs, os legitimos, tende a diminuir rápidamente, á medida que se acaba o estoque fisico existente, de todos os comerciantes legais, majors ou independentes. O que vende pouco vai virar definitivamente mercado de nicho, onde estarão escondidos os colecionadores e aficionados de generos ou os fâ-clubes. Os donos e vendedores destes discos terão de conhecer literalmente cada comprador, mesmo com todas as facilidades da internet. O cidadão comum, que um dia comprou discos por impulso, na cesta de ofertas do supermercado, segue em frente para gastar seu dinheiro em biscoitos recheados.
A segunda pilha, dos CDs informais, autoproduzidos aumenta, pode-se dizer exponencialmente. Uns feitos em casa, aos borbotões e vamos deixar de fora os criminais, as falsificações. Outros podem ser discos que pagaram direitos aos autores e impostos na fábrica, mas até por serem frutos de incentivos fiscais, do esforço de autogestão de produtores e músicos, das facilidades de produção de conteudo, não carregam em si a habilidade de se comercializar, de se inserir no mercado, não são "produto", neste sentido legitimo em chamar um disco vindo da industria fonográfica de produto. São artesanato, são como as cópias de gravuras, ou esculturas reproduzidas de moldes. Trabalhos artisticos e culturais, contidos num objeto nascido para ser comercializado, num formato identico ao disco da loja, mas que não pode circular, não é mercadoria, não tem Nota Fiscal. Haja armário!
Nem todos estes discos desta segunda pilha, a dos ilegitimos, choram pela a falta de um sistema de distribuição, a falta de interesse do comerciante ou a falta de espaço na midia. Uma boa parte já circula e garanto que é a parte saudavel, a que irá crescer, a partir da iniciativa dos produtores e músicos de irem diretamente ao público, na venda depois do show, direto aos fãs, habito obrigatório daqui pra frente. Pode ser necessario um terremoto fiscal para se alterar o sistema de forma que isto não seja considerado uma ofensa aos cofres públicos. Acredito que desonerar o disco de impostos é o que faz mais sentido, como um dia já se fez para o livro, para se pensar em cuidar do problema do conteudo e não do problema das cópias, irrelevantes em tempos de cornucópia - os bens imateriais que não tem suporte material, a cópia perfeita, a multiplicação dos peixes digitalmente. Toda a força para esta iniciativa, isentar a produção musical de impostos, já é um começo.
Mas o disco não é o formato, a midia, a bolacha. No LP cabem 36 minutos de música, no CD cabem 72 minutos. Apesar de no CD caber muito mais do que 12 músicas do LP, foi preservado o tamanho do ramalhete de músicas, por mera convenção. O disco para os editores tem 14 músicas no máximo. Tanto faz a razão, um disco pode ser um momento na vida do artista ou uma dose habitual para o consumidor, como queiram. Um disco é também apenas o seu conteudo, a informação pura, 12 ou 14 arquivos virtuais numa pasta imaginaria, que ficam juntos no mundo digital como andavam no mundo fisico. Mesmo que se separem para a venda de faixa em faixa nas lojas de download, continuam sendo faixas que nasceram num disco. Continuam sendo lançadas ao mundo de dentro de discos, uma faixa só não tem impacto, não impressiona, não é? Pode ser, mas que o Compacto, o single, já fez barulho, isso fez.
Para voces verem como será a moda quantica, vamos pegar todos os discos daquelas duas pilhas de CDs, - sem mexer nelas! - e criar duas outras pilhas, a dos discos que estão á venda para download na internet e a dos que não estão. Ao se eliminar o estoque físico na venda pelo download, desapareceria um grande complicador, dizia a Nova Economia em 2005. Agora, estes discos autoproduzidos teóricamente poderiam ir ao mercado assim que ficassem prontos no estudio, sem passar pela Era Industrial, sem fábrica, com muito menos investimentos e recursos. Não é exatamente tão simples porque precisam de metadata completa, até para que se consiga vender em sites fora do Brasil, onde a música brasileira é bemvinda e vende bem, sim senhor. E fazer metadata é um, perdão, saco, requer precisão contabil e cartorial juntas, precisa seguir formularios mais complicados que o Imposto de Renda para preencher. E por isso, parece que a necessidade de gerar metadatas não atinge os autoprodutores com a urgencia que deveria atingir, pode ser a tal da Brecha Digital, profunda barreira causada pelos nossos bits em portugues não traduzirem os bits em ingles. E além disso, por causas ignoradas e varias, download não vende no Brasil, quase nada comparado ao Resto do Mundo. E agora temos um problema nacional: muito pouco do catálogo brasileiro está à venda na rede.
O que poderia ser um fator de sobrevivencia do disco não veio trabalhar a nosso favor. Faltou tutano aos independentes para gerar os metadatas completos, faltou orçamento - e vontade - para trazer à venda digital os gigantescos catálogos brasileiros das multinacionais. Pior, mais um arrepio, o catálogo de downloads á venda é o próprio catálogo de CDs á venda, vai minguando junto. O terror ás vezes nos fará reagir. E ainda por cima, os downloads sempre foram muuuito caros no Brasil, por varias razões, inclusive por causa de impostos e um preço minimo estabelecido pelos representantes do autores. Agora talvez não seja mais possivel refazer o percurso de sucesso do iTunes com nosso catálogo digital brasileiro. A teoria da Cauda Longa, do fundo de catálogo gerando tanta receita quanto os sucessos, não se aplica hoje á música brasileira em geral. O digital em breve responde pela metade das vendas, mas não aqui. O Brasil, importante mercado no mundo fisico dos LPs e CDs, não existe no reino digital. E agora será a vez de quem perguntar? Repita comigo: mas o que eu faço do meu disco? Quase ouço uma resposta em coro celestial.
Mudando de marcha e relembrando, entre 1980 e 1995, houve um movimento de consolidação do mercado fonografico, coisa considerada natural e saudável pelos que entendem que o mercado se governa. Recomendo o livro "Os Donos da Voz", da Marcia Tosta, que se deu ao trabalho insano de juntar dados confiaveis sobre esta pré história da arte no Brasil. De algumas dezenas de empresas nacionais que dividiam entre si a responsabilidade de cuidar de centenas de artistas com vida ativa, nos múltiplos gêneros da diversidade brasileira – e italiana, francesa, inglesa e mesmo americana – no inicio dos anos 90 só haviam 5 corporações mundiais cuidando de 80 % de todo o dinheiro de toda a música. Isto era informação corrente na época, fazia parte dos relatórios da IFPI. Hoje, as majors são 4, cuidam de um dinheiro que diminui e se aproxima do valor de 1990, depois de um auge em 2000, e este dinheiro delas continua sendo 80% do mercado, com poucas dezenas de artistas sob contrato. Buldogues tenazes que não largam o osso.
Pouco antes do inicio do processo de centralização do mercado fonográfico – brasileiro e mundial – havia um ecossistema estável que refletia as conquistas da era industrial. Haviam fábricas de LP no Recife, em Porto Alegre alem de SP e Rio. Uma gravadora nacional atingia 3 a 4 mil pontos de venda cadastrados como lojas de disco. Havia inadimplência, mas o sucesso era o melhor cobrador. Quem quisesse vender o sucesso pagava suas contas em dia. Por conta da inflação, vendia-se à vista. Assim, um primeiro disco de um artista podia vender 3 a 5 mil copias no lançamento, um por loja, á vista. Como as revoluções da época se propagavam pela música, desde os anos 50 o cenário era totalmente mutante, não havia lei sobre o que poderia ser sucesso, uma hora seriam os italianos e suas canções modernas, no momento seguinte seriam negros americanos e o soul recém saído da igreja, ou ainda os rapazes e moças prafrentex que anunciavam mais e mais novidades, o samba canção, o twist, o ie ie ie ou a bossa nova. Cançonetas picantes, barítonos suingados, metais em brasa, a novidade fazia a vitrola girar e os discos tocavam e vendiam. Neste cenário risonho, aventureiros fundaram impérios e as rádios obedeciam às paradas de sucesso, pela contagem de telefonemas pedindo bis.
Organico e inocente, mas eficaz.
Antes deste cenário idílico, há uma luta de décadas pelo predomínio do formato, onde dezenas de métodos de gravar e reproduzir a música disputaram o seu lugar no mercado, até que se fixaram aos poucos, o disco de 10 polegadas e 78 rotações, à base de cera de carnaúba, com uma musica de cada lado, entre 1930 e 1950, quando surgiu o plástico vinil, vindo da industria da guerra e que gerou um produto melhor, o LP de 12 polegadas com 6 musicas de cada lado e seu filho menor e mais urgente, o disco compacto de 7 polegadas e 1 musica por lado. Cada música tinha 3 minutos desde sempre, porque era o que cabia nos cilindros de música, da Casa Edison , que circulavam deste 1890 e que foram substituídos pelo *disco* de 78 rotações, também com três minutos por lado. Canções de três minutos levaram 100 anos se fixando como modelo para música empacotada. O compacto com uma música fulgurou no céu como um cometa transportando brilho até o final dos anos 80, onde a humanidade conheceu pelo compacto simples as pérolas “Como Uma Onda No Mar”, “Voce Não Soube Me Amar”, “Sou Boy” e "Inútil", penúltimos hits que o compacto revelou, de uma em uma.
Forma e conteúdo também se confundem neste período do LP, as leis de mercado vigorando de forma linear e simetrica. Vender 12 músicas é melhor do que vender duas numa única venda. Este é o argumento que define o fim do 78rpm - e depois o fim do compacto. Po isso deu-se o surgimento do LP como produto de massa, a meta final da era industrial, a era da copia perfeita. Assim, durante os anos 50, pós guerra, quando se implementava a sociedade de consumo, conseqüência lógica da capacidade industrial multiplicadora instalada nos Estados Unidos, junto com rádios, refrigeradores, aspiradores de pó e liquidificadores, vieram as Victrolas, Electrolas, e os maravilhosos discos Long Playing, tudo moderno, plástico, e perfeitamente iguais.
No primeiro momento dos 50 há um repertorio anos 30 e 40 sendo transcrito da carnaúba em 78 rpm para o vinil em 33 rpm, uma parte gerando muito lucro por estar já gravado, era só mudar de formato e outra parte se refazendo na transcrição, e vieram muitas orquestras sonoras com ingredientes eufóricos latinos, mambo, samba, cantores de vozeirão teatral e topetes puxados no pente, mas muito conformados ao fim do período vitoriano, modestos e solenes, ecos ainda do começo da republica, de antes da guerra.
De algum lugar no espaço, um marciano traz a receita da guitarra elétrica, caída no meio de uma plantação de algodão, e os americanos são invadidos por seres que produzem suingue sem orquestra. Aqui no Brasil, o caos reina, Darius Milhaud, Leopold Stokovsky e Marcel Camus semearam a inquietação e os acordes com sétimas e nonas, em Taubaté a Celi Campelo descobre o jeito certo de estalar os dedos, na Bahia estuda-se violão e instaura-se o fenômeno da primeira singularidade, quando fica suspenso o impossível e o mundo muda violentamente, num surto de criatividade que surfa a base instalada de rádios, vitrolas e poucas TVs . O final dos 50 anuncia os anos 60, onde tudo funcionava em ordem, os artistas tinham chances, as chances eram razoavelmente bem distribuídas e o gosto predominante era o da maioria, que se divertia em descobrir o que queria entre as ofertas. Assim, apesar das revoltas e movimentos sociais, atravessamos décadas bem redondas e formativas do catalogo geral que circula pela rede hoje. Jazz, rock e pop, o brega, a disco dance, boa parte dos clássicos, a bossa nova e a música popular brasileira, tudo isso se consagrou como repertorio depois do 78 e antes do CD. A Era do Vinil, se posso batizar. Como disse o Durval no filme Durval Discos, sobre a polemica CD versus LP: "O som do CD pode ser melhor, mas a música...."
A tecnologia sempre vence. Depois de vender mais músicas, depois de criar o ramalhete de doze canções, o que poderia superar o LP? A resposta certa é: um formato que conseguisse a reprodução da Quinta de Beethoven sem precisar virar o disco. Juro, esta é uma das causa do sucesso do CD como formato, os 72 minutos suficientes, e caber no bolso do paletó do Akio Morita O CD, fruto de uma aliança industrial quase impensável entre Philips e Sony, nasce mórbido, disposto a acabar com tudo, a fim da reformulação do universo musical, que precisaria ser refeito no formato digital, uma nova industria. Não era uma evolução natural, como o LP que havia sucedido o 78, ambos analógicos e dividindo o mesmo toca-discos. Venceu a tecnologia mais barata, de leitura de pontos e buracos num disco girando rápido. O disco teria de ser pequeno, brilhante e precisava ser guardado numa embalagem sem atrito. Os primeiros CDs literalmente se desmanchavam na mão, saia o metal nos dedos. O objeto decretou o fim da capa de disco como forma de arte complementar à música, com aquela capinha feia de CD, coberta pelo plástico grosso da eufêmica caixinha porta jóia.
Mais mórbido ainda, o conceito digital nasce contendo a copia perfeita, sem o problema das “gerações” causado por cada um dos processos da gravação sonora. A primeira geração ao captar o sinal pelo microfone, a segunda ao copiar o sinal durante a mixagem das pistas do estéreo, a terceira ao cortar o acetato, a quarta ao gerar as fôrmas do vinil, a quinta ao fundir o vinil, a sexta ao rolar da agulha no vinil, gerando novamente ondas sonoras na sétima geração. A cada conversão de formato físico, há uma deterioração da realidade captada. No sistema digital, assim que o sinal sonoro é convertido em eletricidade, já é transformado em pulsos digitais binarios, zeros e uns, que se transportam quantas vezes for preciso, mudam de estado e se recuperam, saindo perfeitamente iguais no final do processo, digamos assim. Mais ainda, o digital nasce a partir da procura da copia perfeita e da transmissão perfeita, com a menor energia e sem atrito, sem se perder nada em todo o processo de reprodução e transmissão, fruto de altas especulações da Teoria da Informação, no ambiente da Guerra Fria, que também trouxe a rede que não cai nunca, a Internet. Voce consegue imaginar um universo onde alguma coisa possa ser criada, copiada, transportada, transformada sem custo, quase sem gasto de energia, sempre, a cornucópia farta e inesgotável? Coisa de doido. Posso ver o cientista pirado esfregando as mãozinhas, conseguimos, conseguimos.
Imagino que os Administradores Fonográficos consideraram isto uma vantagem e não uma ameaça. Afinal, num mundo analógico, só Eles tinham as ferramentas para lidar com o novo universo digital. Gravar, reproduzir, manipular sons digitais só em máquinas bem caras, Sony ou Philips, durante um bom tempo foi um monopólio industrial muito bem gerido. Alias, cada CD fabricado paga royalties até hoje. Pois Os Caras resolveram que iríamos trocar de formato novamente, como havia sido feito da carnaúba para o vinil, simplesmente saindo do LP e transportando o catálogo para o digital CompactDisk . Pequena confusão natural, na verdade eles estavam transportando o catálogo do reino analógico para o reino digital, uma pedra filosofal transformando lixo em ouro, ou vice versa. O CD, hoje sabemos o que é isso, era apenas a mídia e a mídia, ora, a mídia muda de shape a cada 15 minutos!
Em 1980, já um produtor musical com algum sucesso e boa remuneração, resolvi investir no digital por passatempo, por ter alguma experiência prática com um modestissimo computador pessoal Sinclair, onde fazia calculo de custos semanais na época da inflação de dois dígitos por semana, primeiro investindo num Apple IIe, de saudosa memória e em seguida num portentoso IBM PC AT, com um monitor colorido, que custou um carro quase do ano. Enquanto isso, no estúdio, o reino digital se aproximava da música, sedutor. Primeiro, com o sampler, que tirava uma foto de um pequeno som, uma amostra, e nos deixava brincar tocando como notas num teclado, ou um conjunto de pequenos sons que reproduziam uma bateria e que podíamos programar para tocarem em sequencia, mecanicamente, perfeitamente no tempo, incansavelmente, sem parar até hoje.
Logo em seguida, os amostradores digitais já conseguiam reproduzir coisas maiores, sons de piano, sons de naipes de cordas, aquele grito do James Brown. Até que um dia apareceu um gravador de fita digital, um trambolho que gravava o sinal digital de audio, músicas inteiras em fitas de vídeo, o som era limpo, transparente, mas montar o disco era uma aventura numa ilha de vídeo, olhando riscos na tela. As coisas foram indo digitalmente até o dia que numa reunião houve a sugestão de lançar um disco primeiro no formato CD, o "Benjor" das mãos, na WEA. O dia em que o slogan mudou para "À venda em LP, K7 e CD". Nas lojas, o que era uma gaveta de CDs virou uma sessão inteira e depois uma loja especializada em CDs. Como toda novidade, aceitamos e pagamos bem, comprando tudo de novo, até o ponto sem volta, quando a maioria se livrou dos seus LPs, quinze anos fazem.
Nesta altura, o reino digital, como um prium,a proteína da vacalouca, se reproduzia matando toda resistência, pela sua própria eficiência de desenho. Durante a década 85 a 95 o digital invade o sistema telefônico, a industria, o comercio, o sistema financeiro, a Nasa e o DoD. Cai o muro de Berlim e chove dinheiro para implantar a Internet para fora dos confins da Segurança Nacional americana, as universidades se transformam em asfaltadores da autoestrada da informação, filha mais bela do reino digital, a WWW, a rede do mundo todo.
Em 1995 consegui uma senha para ter acesso pela USP, usando uma colcha de retalhos de um Mosaic e alguns arquivos de configuração. Até então, não era incomum conectar-se a um BBS americano para dialogar com colegas sobre as mazelas de masterizar um CD, verdadeira bruxaria. A partir da Internet, Usenet e os grupos e listas do inicio da rede, a informação sobre o digital se espalhou como epidemia, cada contato multiplicava a infecção, programar, virar a noite fazendo funcionar um programinha qualquer, algoritmos se formando e se espalhando abertamente, publicamente, um dominio público. Palavras novas foram surgindo e se incorporando ao dia a dia, email, www, mp3, napster, veio a explosão global, milhões de usuários, bilhões de arquivos, trilhões de copias – perfeitas – circulando, sem "gastar nada".
A industria fonografica, em algum lugar dos parágrafos anteriores, ao se consolidar em grandes corporações, perdeu o "olho do dono". As gravadoras, em sua totalidade, como os bons restaurantes, dependiam do gosto apurado do chefe, que definia estilos, consagrava artistas em que acreditava, investia ás vezes ao longo de décadas, criando obras seminais e fundadoras de nossa cultura, sem necessariamente vincular o sucesso ao numero de vendas. Num equilibrio saudavel, bons vendedores sustentavam bons artistas. Ao se consolidarem e transferirem o critério de sucesso para o valor das ações na bolsa, para o dividendo a ser pago aos acionistas, venceu a lógica desviada do mercado e suas leis de oferta e demanda, valida agora também para o conteudo, vigorando apenas um raciocinio contabil de custo beneficio imediato, a ser avaliado no fim do trimestre. André Midani mostrou isto bem em sua antológica entrevista á Folha, onde explicou o jabá, vitamina do lucro rápido.
O discurso pós globalização e centralização da industria fonográfica foi reduzido a alguns aforismos profissionais que podem ajudar a entender as posturas da industria e sua convivencia com a internet. Vender muito de poucos artistas ( é melhor que vender pouco de muitos artistas). Vender cada vez mais dos mesmos artistas ( portanto, vende quem vende). Vender para menos compradores que compram cada vez mais ( chega de vender de loja em loja, o negócio é vender para grandes magazines, supermercados e rede de lojas, custa muito menos e o risco de inadimplencia é menor). Quando isto estava implementado de norte a sul leste e oeste, a indústria teve um crescimento financeiro gigante, o disco quadruplo de platina, alguns artistas alcançaram visibilidade e mercado global e em meados dos anos 90 já se enxergava o erro da falta de desenvolvimento de novos artistas nas majors, e o fim da distribuição capilar, que entregava discos competentemente quase que em toda esquina. Os independentes apareceram e cresceram, para abrigar as tendencias e artistas excluidos do processo de otimização das vendas. O pirata organizado tambem apareceu e cresceu, suprindo primeiro o K7, aprendendo sobre logistica e depois vendendo Cds na esquina, preenchendo espaços não defendidos, posições abandonadas.
Ao se defrontarem com a internet do mp3, em 1996, nas gravadoras não havia ninguem de plantão para dialogar com a novidade, apenas advogados tentando erguer a proteção, a defesa contra o "inimigo", que queria música, muita música, toda a música do mundo, agora ao alcance, disponivel em listas organizadas por generos minuciosamente como no Audiogalaxy, comentadas, recomendadas pessoalmente, com mecanismos de parada de sucessos transparentes e verazes, o numero de pessoas que estavam disponibilizando as músicas. Mas fechou-se o Napster como opção juridico financeira, sem perguntar para o operacional. O raciocinio de um produtor fonografico seria seguir uma lógica anterior de muito sucesso: AM, FM e MP3, tudo a mesma coisa, são meios de divulgação. Mas a melhor defesa escolhida foi processar e dizer que era crime disponibilizar suas músicas para outros ouvirem. A partir daí, a derrocada. Perderam todos, os autores, os músicos, os produtores e os donos da industria, toda a cadeia produtiva, debilitada pela centralização dos anos 90, caem todos, sucumbem ao avanço do reino digital, a lógica da cópia e da transmissão perfeita, a economia da fartura, a cornucópia.
Deu nisto.Os maiores armários já inventados, cabendo quase toda a música gravada numa caixa de sapatos hoje, amanhã num cantinho que fala com o espaço, meu celular, uma gota na nuvem.
A música vai bem, obrigado. Na internet, livre e solta, e fora dela. Os generos se fortalecem, novos interpretes, orquestras, produtores, espetáculos. Veja o Auditório Ibirapuera, exemplo de projeto de sucesso, de bom investimento em música, e que gera produtos, DVDs, CDs, programas de TV, impulsiona carreiras, chama a atenção do público para os músicos e para a música de forma generosa e com consistente retorno na imprensa, na imagem pública da TIM, a mantenedora. Os artistas, com aquela pergunta entalada na garganta, olham para o público, com a esperança de vender seu CD no final do show. O espetáculo renasce, é o momento raro, escasso, um artista tem talvez 100 espetáculos por ano, é um instante crucial a favor do artista. Sim, funciona. No Auditório Ibirapuera, pode se esperar vender o CD para um tanto do público, aficionado e extasiado com um espetáculo impecável. Podem ser 250 discos num fim de semana, se esta moda se consolida, nas 40 semanas uteis do ano musical podem ser 10 mil discos por ano diretamente vendidos pelo artista, o disco souvenir. Neste cenario de uma nova cultura da música sem vinculos com a indústria fonográfica, o CD é um artesanato, e , mesmo querendo pagar os autores, será preciso reconstruir um novo ECAD que pense em como ir buscar este dinheiro, que por ser mínimo, pode desaparecer do radar.
Na verdade, um Novo ECAD deveria ir buscar uma solução mais ambiciosa, mais ampla e abrangente, repensar o mecanismo de cobranças, ir buscar o valor devido á música em todas as transações que a música acrescenta valor, por menor que seja. Repensar a partir da falencia do modelo da venda da cópia e do privilégio da difusão, estes sim, cadaveres insepultos. Várias teses circulam na rede, por exemplo recolher um dinheiro de todo mundo, telecoms e consumidores, um pouquinho por ano, uma unica taxa de música, paga na conta do celular, alguns reais para cada um dos centenas de milhões de celulares já dá um numero próximo do que o ECAD arrecada para os autores hoje. Se o ECAD distribuisse tambem para gravadoras, músicos e artistas, com mais alguns reais por ano já teriamos um numero parecido com o faturamento da industria fonografica toda. Então, pelo preço de um CD por ano, por exemplo, poderiamos ter toda a música que conseguissemos consumir, remunerando todo mundo. Será necessaria uma discussão nacional, com todos os envolvidos, uma Assembléia da Música, para se refazer com urgencia um modelo que levou décadas sendo tecido e que se desfaz como modelo financeiro viavel, por pensar apenas na venda da cópia e no privilégio de transmissão como unicas referencias de valor na música. Um Novo ECAD que consiga interpretar as novas paradas de sucesso, medir o interesse do público, a quantidade de vezes que a música circula pela rede, muito maior que via RTV ou cópias físicas e a partir dai estabelecer uma distribuição de direitos que contemple mais rigorosamente a realidade.
Os artistas e seu público, estes continuarão se procurando e se achando, por afinidade, por interesse. Com ou sem intermediarios, que são importantes e realizam os sonhos.
O disco poderá ser substituido por outros ramalhetes ou maços de canções. A obra inteira do artista poderá andar junta de uma vez só, como nas caixas de Cd - ou nos arquivos torrente. Mais ainda, todos os formatos poderão conviver, o CD, o LP de vinil, o mp3, arquivos minusculos e os sem perdas, e ainda o 96Khz, formato esotérico, a máxima fidelidade, som em Alta Definição, que já existe nos estúdios e que poderá florescer no DVD blue ray e na banda larga. Em versões para tocar no celular, no som do carro, em cartões de muitos gigas, em formatos que vão aparecer. Tudo junto, o gratis virtual e o absurdamente caro, como LPs de 200 gramas a 100 dolares. Muita coisa de graça, para divulgar. Na verdade o impulso tem de ser, como sempre foi, o máximo possivel de execuções ou audições gratis, é a forma de acostumar as pessoas com o repertorio novo, e monetizar o que tem valor, o privilégio, o único, o raro. O dinheiro está onde sempre esteve, inclusive no bolso dos espectadores.
Um dia, os artistas e o público irão se acostumar com outra lógica, onde a carreira de um artista não será mais a sua carreira fonografica, haverão outros marcos no percurso. O Wikipedia vai achar outro modo de organizar os fatos na vida de um artista de sucesso sem ser pela discografia. Talvez o mundo pop tenha pressa em ser clássico e de dominio público. E a pergunta certa será feita: o que será da música que eu faço?
Pena Schmidt
Auditório Ibirapuera, junho de 2008.
Pena, vce falou e disse.O ECAD e as associações pintam e bordam aproveitando-se da ignorância (no bom sentido)de um monte de músicos acerca da mecânica dos direitos autorais.Tive inúmeros problemas e cheguei a fechar uma sociedade.Eu vivia de shows em casas noturnas e hotéis que pagavam a taxa do ECAD e "pontuava" meus shows e fazia a farra da pontuação dos direitos no carnaval até o dia em que a corrupção instalou-se.Tirei o time de campo, fiquei duro, vendi guitarras, teclados e meu lindo carro importado, mas livrei-me do processo na polícia federal caindo fora ao contrário de muitos compositores e criaturas que nem eram músicos mas se locupletavam e ainda hoje mamam nas tetas do ECAD e das sociedades que fazem vistas grossas pois ateé funcionários pontuam e recebem direitos sem serem músicos com apoio de alguns compositores de araque que arranham um violãozinho.Fui roubado descaradamente por duas sociedades e uma delas me indenizou com muita grana.Ainda tenho as provas documentais. Fui até ameaçado de morte.O ECAD precisa sofrer uma auditoria e ser gerido por pessoas do meio musical e não por um bando de evangélicos que administram aquilo como se fosse uma igreja.Sou autoralista, vivi ali dentro e sei de TUDO.Em breve escreverei tudo em um blog para chutar o pau da barraca e botar lenha na fogueira a fim de abrir uma brecha para rediscutir o papel do ECAD e o sistema de arrecadação e distribuição.As sociedades também precisam ser recicladas.Curti muito seu texto.Valeu!marnlima@gmail.com
ResponderExcluirO mundo espera seu blog e sua lenha nesta discussão. Não demore.
ResponderExcluirAbs
Pena